editorial de uma renúncia

Do dia em que acordei e tive uma leve impressão de que nada era assim tão grave...

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sexta-feira, dezembro 30, 2005

o lume da memória, do ano que passou...

Uma acha que era lume, um naco de madeira a arder, mas agora não é mais que uma tímida presença fumegante entre cinzas e pensamentos. E entre pensamentos e percepções, pode-se ver o quanto queimou nas marcas ora cicatrizadas de minhas mãos. Segurar 2005 pelas mãos e não deixar cair. Segurar suas dores e deleitar-se, com extremo regozijo, a vitória de tê-lo segurado. A bravia bravata de ter o fogo em mãos, e queimar-se, mas ser também parte deste fogo.

Esta lenha que era brasa, mas agora não é senão a memória da fogueira, que não mais aquece ou ilumina, mas indica na fumaça singela, subindo trôpega a mirar o céu, toda a potência de outrora. E se ouve luz, e se era a luz do fogo, este ano que se vai, este lume que se esvai, hoje é feito de carvão e de lembrança.

Mas que se acaba, e se se acaba, não foi o originário suspiro ígneo da criação. É apenas mais uma volta da roda doida da vida que despenca ladeira abaixo. É o fogo de palha, e palha não faltará, para fazer nova a chama das fogueiras – das paixões, se elas vierem, e das vaidades, que decerto chegarão.

Aprender? Talvez sim..., talvez, quem sabe. Melhor não substituir aquecimento por esquecimento. Talvez então roubar do lume extinto um naco negro de carvão, e desenhar em traços livres, um sol maior, um sol sorrindo, no muro em branco de 2006. E por fim... felicidades.

segunda-feira, dezembro 19, 2005

Da série ErosGrafia

Teu olhar em mim

Daí que ela já não conseguia mais ver coisa alguma além dele. Todo ele. E vendo, já não era seu o seu olhar, como não é seu o olhar do espelho, posto que ele já também a fitava toda com o mesmo desejo. O olhar transformou-se, assim, o ato físico do toque, e como já passava a vista em tudo, a tudo absorvia a memória da textura.

Divisou seu corpo e o envolveu. Ficou de joelhos na frente dele, observando, sentindo aflorar, sentindo engrandecer, sentindo o macio dos pelos como se este corpo fosse o de um animal. Talvez o fosse no seu devaneio irresponsável, malicioso e magnífico.

E era um corpo nada esguio, nada atlético. Másculo o corpo dele não era, mas era um físico verdadeiro, ou o habitual corpo cotidiano. Era óbvio, e por conta disso, confortavelmente familiar. Quase todo flácido, mas teso, incrivelmente teso, na região da sinceridade. Este corpo de homem tão evidentemente humano... era o que a deixava sedenta, e pelo toque das vistas ela percorria a geografia irregular do ser masculino.

Um corpo multiforme, corpo de gente – odiava super-heróis – e por isso mesmo irrespondivelmente adequado ao seu prazer, todo ele compatível com o toque de seu olhar agora desfocado por sentir aproximar-se do momento do gozo. Um corpo seguro e satisfeito por ser apenas o veículo conduzido pelo olhar, e que, portanto, urgentemente desejável.

E quando este olhar tátil deu asas ao atrevimento sentiu o agradável volume na boca, que ia e que vinha, num bailar quase inocente – calmo e vagaroso – com a sua língua. Fechou os olhos, como que para absorver mesmo em sonho as delícias desta penetração sensitiva. Virou de costas e empinou a bunda, para dar justeza ao ato e permitir que Kundalini pudesse também beijá-lo com sua visão hipnótica.

Quando então – e finalmente – ele aproximou sua carne para sobre ela derramar o intento, e no ato belo derramar-se dentro, bem sabia: desde o primeiro olhar já habitava este interior.

quinta-feira, dezembro 08, 2005

À Dona Ivone Lara...

Talvez eu seja mesmo um bom observador das coisas. Talvez! Torço apenas para não incorrer na falha irreparável de construir sobre as observações da vida, algo que somente para mim tem algum peso, ou significado – meta de muitos escritores, talvez carentes, que supõem haver diálogo nos textos lido alhures.

Enfim, lá estava eu a assistir a um grande espetáculo. Dona Ivone Lara. Senhora de respeitáveis... MUITOS anos de caminhada e samba, no pé e na voz. Uma negra linda, a estrela da noite. Noite que, inclusive, fora organizada para homenagear a mais que justa causa dos movimentos negros de nosso Brasil cordial.

E no espetáculo daquela noite, sobressaiu-se o espetáculo das raças. E não se trata exatamente das raças negra, índia, parda, branca... trata-se de venusianos, terráqueos, marcianos... Coisas incríveis aconteceram.

A começar pelo show de abertura, um show de dança. Daí que o mestre de cerimônia anunciava o “ousado trio” de mequetrefes rebolativos. Não me lembro do nome que o trio carregava, mas era acusado de ser extremamente sexy. Injusta acusação, diga-se. E o que se via: três jovens, magrelos, branquelos, se esforçavam nas caras e bocas, e tremelicavam seus esguios corpos de maneira que cheguei a acreditar na possibilidade de estarem bailando sobre brasas fumegantes. Bem, não era esta a questão, bem como não se tratava de uma pegadinha. Eles estavam ali a sério, e o mestre de cerimônia nos animava a bater palmas para os três moços que, alucinados, tentavam transformar em dança o que era a simulação de algo próximo de atos sexuais em pleno ar.

Seguiu-se a apresentação de um grupo de “funk proibidão”. E tome Tati Quebra-Barraco e produtos similares. No centro do palco, uma mocinha magrela de cabelo descolorido imaginava como seria bom ter uma oportunidade de dançar para o É-O-Tcham, mas, enquanto sua vez não chegava, se virava com o que tinha à mão: uma tímida dupla de funkeiros que tentavam seguir a cartilha funk-you: “vou te atolar”, “vou te dar muita pressão”, “vem aqui pro seu tigrão”... pior mesmo foi ouvir à boca pequena, a tese de que aquilo ali era a mais legítima manifestação da periferia. Discordo. Esta é apenas uma delas, e, na minha opinião, das piores. A indignação do hip-hop seria um tanto mais apropriada. Enfim...

É chegada a hora. O mestre de cerimônia, mais perdido que cego no Rio de Janeiro, anuncia a chegada de Alcione. Bem, ele se corrigiu, não a tempo de evitar constrangimentos, mas, vá lá, a excitação era geral. Dona Ivone Lara, cantando, dançando, e a cada duas músicas, sentando (porra, ela tem idade para isso). Incrível, espetacular. Sua simpatia e carismas... inigualáveis. E os meninos gritava em direção ao palco: linda, maravilhosa... pense numa senhora ruborizada. Uma graça. Entretanto, havia algo mais a observar. Margeando o palco do show gratuito, diretamente sob os pés da monumental negritude de Dona Ivone, assomavam as hostes da mendicância. E estavam ali, homens, mulheres, crianças... negros (a maioria), brancos (quase pretos de tão pobres). Bebiam pinga em garrafas de plásticos, cheiravam cola derramada à manga da blusa, ora se afagavam, ora se estapeavam, e sempre de olho na polícia que observava de longe, e a tudo observava com a habitual desconfiança dos homens da lei.

Mas o que importa é que estavam lá para ver a graça de graça, e ocuparam, sem cerimônias, os melhores lugares disponíveis de toda a platéia. Se por acaso discutiam ou não a condição de ser negro, de ser pobre, de ser excluído, de ser ou de não ser... talvez sequer importasse. Pareciam bem felizes e, de alguma maneira, realizados.