editorial de uma renúncia

Do dia em que acordei e tive uma leve impressão de que nada era assim tão grave...

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quinta-feira, dezembro 08, 2005

À Dona Ivone Lara...

Talvez eu seja mesmo um bom observador das coisas. Talvez! Torço apenas para não incorrer na falha irreparável de construir sobre as observações da vida, algo que somente para mim tem algum peso, ou significado – meta de muitos escritores, talvez carentes, que supõem haver diálogo nos textos lido alhures.

Enfim, lá estava eu a assistir a um grande espetáculo. Dona Ivone Lara. Senhora de respeitáveis... MUITOS anos de caminhada e samba, no pé e na voz. Uma negra linda, a estrela da noite. Noite que, inclusive, fora organizada para homenagear a mais que justa causa dos movimentos negros de nosso Brasil cordial.

E no espetáculo daquela noite, sobressaiu-se o espetáculo das raças. E não se trata exatamente das raças negra, índia, parda, branca... trata-se de venusianos, terráqueos, marcianos... Coisas incríveis aconteceram.

A começar pelo show de abertura, um show de dança. Daí que o mestre de cerimônia anunciava o “ousado trio” de mequetrefes rebolativos. Não me lembro do nome que o trio carregava, mas era acusado de ser extremamente sexy. Injusta acusação, diga-se. E o que se via: três jovens, magrelos, branquelos, se esforçavam nas caras e bocas, e tremelicavam seus esguios corpos de maneira que cheguei a acreditar na possibilidade de estarem bailando sobre brasas fumegantes. Bem, não era esta a questão, bem como não se tratava de uma pegadinha. Eles estavam ali a sério, e o mestre de cerimônia nos animava a bater palmas para os três moços que, alucinados, tentavam transformar em dança o que era a simulação de algo próximo de atos sexuais em pleno ar.

Seguiu-se a apresentação de um grupo de “funk proibidão”. E tome Tati Quebra-Barraco e produtos similares. No centro do palco, uma mocinha magrela de cabelo descolorido imaginava como seria bom ter uma oportunidade de dançar para o É-O-Tcham, mas, enquanto sua vez não chegava, se virava com o que tinha à mão: uma tímida dupla de funkeiros que tentavam seguir a cartilha funk-you: “vou te atolar”, “vou te dar muita pressão”, “vem aqui pro seu tigrão”... pior mesmo foi ouvir à boca pequena, a tese de que aquilo ali era a mais legítima manifestação da periferia. Discordo. Esta é apenas uma delas, e, na minha opinião, das piores. A indignação do hip-hop seria um tanto mais apropriada. Enfim...

É chegada a hora. O mestre de cerimônia, mais perdido que cego no Rio de Janeiro, anuncia a chegada de Alcione. Bem, ele se corrigiu, não a tempo de evitar constrangimentos, mas, vá lá, a excitação era geral. Dona Ivone Lara, cantando, dançando, e a cada duas músicas, sentando (porra, ela tem idade para isso). Incrível, espetacular. Sua simpatia e carismas... inigualáveis. E os meninos gritava em direção ao palco: linda, maravilhosa... pense numa senhora ruborizada. Uma graça. Entretanto, havia algo mais a observar. Margeando o palco do show gratuito, diretamente sob os pés da monumental negritude de Dona Ivone, assomavam as hostes da mendicância. E estavam ali, homens, mulheres, crianças... negros (a maioria), brancos (quase pretos de tão pobres). Bebiam pinga em garrafas de plásticos, cheiravam cola derramada à manga da blusa, ora se afagavam, ora se estapeavam, e sempre de olho na polícia que observava de longe, e a tudo observava com a habitual desconfiança dos homens da lei.

Mas o que importa é que estavam lá para ver a graça de graça, e ocuparam, sem cerimônias, os melhores lugares disponíveis de toda a platéia. Se por acaso discutiam ou não a condição de ser negro, de ser pobre, de ser excluído, de ser ou de não ser... talvez sequer importasse. Pareciam bem felizes e, de alguma maneira, realizados.