editorial de uma renúncia

Do dia em que acordei e tive uma leve impressão de que nada era assim tão grave...

Minha foto
Nome:
Local: mora na filosofia...

quinta-feira, abril 28, 2011

[a vida imita a arte que antecipa a vida]

"Na caducidade do tempo vem o saber de uma dor compartilhada entre todos. Pronto. Veja lá: entre to-dos; e to-das, se preferir. Melhor pra quem leva a vida leviana. Já tentei e vi lá seus méritos. Bem como impropérios, estes que ficam pra depois. Melhor mesmo é aprender. Levar a vida, levar pra vida, levar da vida. E aprender: que tem gente que cansa do quase, que tem gente que cansa, e quase. Tem gente que corre à beira do precipício, e por não cair às vezes olha - veja ali a ponta última do penhasco - e finge um espanto, finge quase um asco, por estar a levar a vida sempre assim sem mérito de causa, causando deméritos, levando porrada, sangrando com o que vem, ludibriando poeticamente a pessoa na dor dissimulada que deveras tem. Daí que se chora, outra vez, veja lá: to-dos-das choramos. Os que não querem compreensão choram por estarem perdidos e perguntam alhures: não era esse o objetivo? Os que querem o querer se lamentam por tê-lo desejado e de lá questionam: não era essa a finalidade? Há os que se entocam pelo medo e não se confortam com o aperto, de onde se pode inquirir: a esquiva não era a busca? Por fim, importa o pouco. Tanto o sangue do desespero quanto o suor do gozo, to-dos secam. Pois até mesmo os loucos que fingem que sofrem para sempre - e todo o sempre - têm o seu momento de dizer o 'nunca mais' para a saudade que jamais cessa. E na caducidade do tempo, pois que a cãibra até a ele acomete, estaremos velhos e resignados de tanto não viver. Pois que ninguém finge a dor que não sente. Pois a trégua escamoteia no fim, como o vindouro se camufla no já bastou." (Quedar-se na queda, página 47)

segunda-feira, março 14, 2011

14 de março

Um dengo ou dois

Um dia de não se acordar

A vida duma cepa já extinta

O cheiro de vela

O cheiro de tinta

A fumaça faminta me lembra uma distância

Tão de mim, tão de você


Irreparável o dito

por indigno, sofro

por filhodaputa, sonho

por miserável, sei

Toda uma vida de não se viver

Uma tarde de evanescer

Uma noite de não suspirar

E aquele tempo que veio matar

todas as manhãs desde então


Não se volta, noite

Não se cala, dia

Não tem o que vem, tarde

Nem se poesia

Não se ama o que resta, se melancolia

quinta-feira, fevereiro 24, 2011

Da série ErosGrafia - parte IV

Em meio a uma saudade sôfrega, a uma vontade urgente, a um desejo impaciente, agarro você com a indelicadeza dos desesperados, daqueles que têm uma sede que se sabe irreprimível, e te puxo pelos cabelos por vontades indomáveis de meus dedos que por vezes te querem tanto quanto eu quero, e me desfaço de suas peles para recobri-la de mim.

Lá de dentro das respirações entrecortadas por rangidos lembro-me de você caminhando em minha direção. Eram passos assim tão dialéticos que me sabiam encontrar, mas talvez não; que me queriam seguir, mas desviavam; e acabavam por esbarrar em mim como se o acaso construído fosse dotado de sabores clandestinos, com notas de um bem-querer ordinário, deliciosamente salpicadas na ponta da língua, a despeito de todas as recomendações do destino que se faziam contrárias.

E por falar em sabores, quero muito saber de onde vêm estes teus, de quando minha língua se perde na pronúncia singular de seus idiomas secretos, e eu, estrangeiro deslumbrado, vou tateando as falas de seu corpo em busca de uma mais profunda compreensão.

E adentro.

E enquanto a luz da luminária e a noite do interior do quarto discutem veementemente, tentando nos encobrir cada qual com o manto que lhes cabe ter – ora escamoteando seus contornos, ora exaltando suas curvas – esbarro na satisfação de seu olhar espremido, fingindo acanhado, as pálpebras semi-serradas, olhar de gueixa a construir o mesmo acaso dos passos que te conduziram até mim. E dali, lá de dentro das respirações sincronizadas, eu aprendo a valiosa lição de que sexo bom é o que se faz, primeiramente, com os olhos.

sábado, fevereiro 12, 2011

Reflexão primeira sobre o carnaval.

E eu aqui, perdendo para a melancolia, numa melancólica tarde chuvosa, num melancólico sábado de joelhos inchados e latejantes, e me chega essa tal da vida plena de carnavais pra se brincar.

Há dias em que simplesmente não dá pra sair na avenida de nuvem negra. Há dias em que a felicidade é quase opressora, e o sorriso, quase uma obsessão.

quarta-feira, novembro 24, 2010

Algo do giro da roda

E só porque é preciso consternar-se. Ao mirar as coisas fluidas, é preciso vê-las fluírem e permitir que elas partam, pois é assim que as coisas vagam e é assim que tudo é. Tudo, movimento. A partida não como fuga: antes: recomeço de pra lá do além da vista, e bem sabemos. As coisas renascem pros lados de lá e bem sabemos. Longe de nós, por vezes crescem para além do que permitimos, e bem sabemos.

É o olho do dono a secar o gado, é o colo da mãe a castrar a cria, é o desejo da posse a ceifar o amor. E bem sabemos: pois sangramos por sabê-lo, por sabermos que o peixe não se faz grande em viveiro pequeno, e que bom pensamento não se forma com imaginação enrustida, e que não se vive uma vida encarcerada.

Longe de nós, talvez, não se baile a festa, não se brinque a farra. Mas, longe de nós – é louvável crer – se compõe a música, e bem sabemos: é preciso. É preciso ver daqui a asa pequena ganhar o ar e buscar, em um tão distante ali, o horizonte em que lhe caiba a vista e o vôo.

terça-feira, setembro 21, 2010

Filosofia alemã e música sertaneja – um encontro possível?

Dentre as várias criaturas iluminadas de nossa MPB está um certo Renato Teixeira. Sertanejo de uma cepa hoje quase extinta; de um modo de se ser(tão) do mato que o mato, este que é apenas superficialmente conhecido pelos urbanóides como eu, se torna algo próximo, muito próximo. Na distância de se conhecer este tal sertão, o Teixeira, com sua voz mansa e sua cara de vovô, nos oportuniza uma proximidade. Uma intimidade que, a rigor não deveria estar lá. Ou aqui, em meus pensamentos.

Mais que músico, ele é um excelente contador de histórias. Em recente apresentação no açougue-biblioteca-centro-cultura T-Bone, Renato Teixeira, iluminado que estava por holofotes, nos fazia crer estarmos todos ao redor de uma fogueira, espantando mosquito com a fumaça incansável de um cigarro de palha, sorvendo goles de pinga de alambique e contando causos entre cada música, de caiporas, onças pintadas, aventuras pitorescas que somente em beira de rio é que se pode ver. Histórias que de repente pareciam tão nossas, como se já tivéssemos ouvido ou mesmo contado cada uma delas.

Daí que me vem a cabeça os dizeres luminosos de um caboclo das bandas de lá, chamado Walter Benjamin. Ele nos falava – ou melhor, estou falando sobre o que me lembro de ter lido – da importância dos narradores de histórias para nos darmos conta de nossa própria comunidade. Era como se em cada causo contado se estabelecesse uma relação de pertencimento entre o narrador e o ouvinte. Genial: como uma trama que vem sendo tecida desde tempos imemoriais – o ouvinte que vira narrador e oferece a narrativa a outro ouvinte etc – e que jamais deveria cessar de ser costurada. E o tecido resultante dessas histórias, se nos cobríssemos dele, nos garantiria guardar um bem por demais precioso: uma memória coletiva. Aquilo que constitui a sutil matéria sobre a qual nós construímos o que somos. Quiçá uma identidade, ou um saber compartilhado do mundo, de como as coisas são ou poderiam ser.

E diz mais: “A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão – no campo, no mar e na cidade –, é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. [...] Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso.”

Nas músicas-contos-causos de Renato Teixeira, vemos sua mão, ouvimos sua voz, o seu testemunho de viver que é só dele, e quando narrado, passa – por que não? – a ser nosso também. Você duvida? Então, curte essa, composta com Almir Sater: “... cada um de nós compõe a sua história/ e cada ser em si carrega o dom de ser capaz/ e ser feliz...”. Isso não te remete a coisa alguma em sua vida?

E por falar na vida, há nela tantos fios soltos, tantas tramas ainda por coser. Num dia somos narradores para nos outros sermos ouvintes. Nos momentos mais inusitados – em parques cheios de patos, no meio do trânsito – somos convidados a contar histórias, a viver histórias. Há sobre nós uma constelação de narrativas. Resta saber qual o brilho de nossa própria estrela.

quinta-feira, março 25, 2010

O dobro ou nada.

Chegando à casa dos trinta anos vejo que não construí grandes coisas. Não tenho um carro, não tenho uma casa. Não plantei uma árvore sequer em minha vida – talvez nem mesmo metaforicamente. Não escrevi um livro, e não encontro um motivo verdadeiro para não tê-lo feito ainda. Não tenho filhos, nem tampouco outras dívidas. Não construí nada que se possa chamar de carreira. Isso sem contar que os trabalhos de que mais me orgulho de ter feito, não me trouxeram, de fato, retorno digno de nota. E mesmo tendo iniciado minha jornada de trabalhador antes dos quinze, cumprirei meus trinta anos desempregado. Assim, assim. O dobro ou nada.

O que me leva a pensar que aos quinze, trinta anos era um futuro tão distante quanto hoje me parece os sessenta. E mais: naquela idade pensava sobre minha existência com a mesma plenitude de agora. Naquele tempo – acreditava – era já um homem, amargurado e esperançoso como outro qualquer, na medida da reinvenção diária da vida. E o que mais poderia ser? O dobro. Ou nada.

Dramalhões aparte, também não posso reclamar de muita coisa. Nunca tive doenças sérias, mas me acomete a lembrança longínqua da catapora – alguém aí já teve de tomar banho em água roxa...? posso jurar que sei exatamente o cheiro daquele remédio. Já fui detido pela polícia, mas passei incólume por agruras mais sérias dentro da carceragem. Já a(r)mei e desa(r)mei, e, sabem o que dizem sobre o tal do amor... que é melhor que nunca ter amado. Já experimentei Deus e outras drogas alucinógenas, mas nada que me pudesse causar graves seqüelas. Já tive tempo para reclamar de não ter ido além dos limites de meu país, e de saber que meus sobrinhos – que são os filhos menos problemáticos que alguém pode ter – só poderão ouvir todas as minhas histórias quando completarem dezoito anos.

E por falar em idade, vem novamente a idéia dos quinze. Chamavam-me, àquela época, de adolescente. Adolescente, pois eu vivia numa crise infinda, pois não sabia muita coisa da vida, pois não sabia o que fazer do amanhã, pois tudo era uma descoberta, e descobertas levam à afirmação de um lugar pra mim na vida, e, sobretudo, por ter a certeza de que quando tivesse o dobro da idade que tinha, saberia a resposta para muitas perguntas... e agora, aos trinta, levo comigo o mesmo olhar. E só me resta aguardar os sessenta. O dobro... ou nada.

E sessenta anos, pelas minhas contas, estão logo ali. E digo mais: minha intuição sobre a morte é a de que viverei o suficiente para urinar na lápide de todos os que me são caros; o que, de fato, é uma grande merda. Espero que até lá tenha resolvido em minha cabeça que isso a que chamamos de vida é mesmo uma grande viagem, curta para alguns, arrastada para outros. Com alguma grandeza e um pouco de coragem tenho pensado que, até o presente momento, minha predileção pelo tesão da descoberta, em detrimento da punhetagem da nostalgia, me tem garantido o direito – e por que não dizer o dever – de estar vido. Eis o macete do meu xadrez: a crença de que o que virá, pode até não ser o melhor... mas é melhor que venha. Sempre.

Ah... já ia me esquecendo: aos quinze, um dos meus apelidos era Cabelo, por conta de minhas outrora longas madeixas. E hoje? Luto contra a calvície. O que me leva à reflexão mais sólida dos trinta anos: ou Deus goza da ironia fina dos filhos-da-puta, ou a vida é mesmo uma grande alucinação. O dobro ou nada.

Feliz aniversário a todos nós da casa dos trinta.