editorial de uma renúncia

Do dia em que acordei e tive uma leve impressão de que nada era assim tão grave...

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terça-feira, janeiro 23, 2007

Clandestino

Hoje desci do ônibus num ponto que não era o meu – como se ponto meu houvesse. Desci-me. Algo como naqueles filmes em branco e preto, como se fosse eu o camareiro a cobrar a devida comprovação da entrada, que me garantiria percorrer o trajeto, que me asseguraria a chegada, seja lá aonde fosse eu dar com minhas bagagens.

E como fosse eu mesmo a trair-me num balbuciar de desculpas desajeitadas, “queira perdoar, seu moço, mas não tenho ticket de entrada, a passagem me falta, mas não falta disposição de lavar aqui ou ali um prato, tirar dali ou dacolá um pó de móvel, algo que possa comprar um lugar que não é meu...” Enfim, expulso de onde estava, de um lugar-de-conforto, de mim.

Caminhei. Olhos fitos na ponta do pé. A grama molhada gelando meus dedos. Légua tirana, passo por passo, pé ante pé. Nem tão longe de casa. Suficiente para me sentir clandestino atravessando fronteira. O bastante para por em dia conversas pessoais, cá com meus botões. Estes mesmo que andam a reclamar a merecida atenção.

Pensamentos. 2007 é um ano que ainda não começou. Sem essa de resoluções para fins-de-anos. Antes, imaginar onde teria começado 2006. Quase memória. A trama que perpassa aquela noite em olhei você através da escuridão do quarto; ou mesmo o barulho na porta, no meio da noite, que não era pra mim, talvez para ninguém; aquela fotografia que não remetia ao meu passado, mas ao meu futuro; os abraços: daquele sem maiores pretensões, começando de leve, mas que se foi apertando, cravando dedos nas costas; ou daquele pequeno e calado, sabe lá se sincero, mas bonito; ou ainda daquele rápido e harmônico, nada mais a declarar além da força do estou-aqui-e-do-seu-lado, ou antes, daquele frio, e declaradamente desnecessário, engodo de nós dois, burocrático, clandestino.

Clandestino: os lugares-de-conforto não são os meus. Hoje escapei-me de não me ver. Procurei acidentalmente caminhos outros para poder chegar. Mais importante que aqueles dias em que queremos apenas fugir. Querer não estar mais aqui não significar querer chegar a algum lugar. Meus labirintos, eu os resolvo para dar noutros maiores. Hoje desci num ponto que não era o meu e subi escadas que antes não estavam lá, e virei por curvas que não haviam... O movimento de que preciso para continuar a longa jornada.