editorial de uma renúncia

Do dia em que acordei e tive uma leve impressão de que nada era assim tão grave...

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quinta-feira, julho 16, 2009

Saber ler o que se sente

No dia seguinte ninguém veio. Repetiu-se, aliás, a companhia de ontens atrás. A espera ingrata, o rosto de olhar roto, o ponteio do relógio. A sina do tempo a repetir-se, a tarde sempre óbvia, a noite sempre cálida, o dia caído. A sombra das coisas a se projetar para dentro, levando consigo o som das coisas. “Aguarda-te era confinar-se n’algum lugar entre um segundo e outro”, quis dizer, mas faltavam interlocutores a ouvir. Ouviu-se suspirando e decidiu que era hora... Entre horas a vagar, sem vigor, tomou a carta nas mãos. Abraçou-a. Sentiu-a com os lábios. Tocou-a com certo pudor. Sentiu-lhe o cheiro. Não era perfume, mas sentiu, fortemente sentiu. Tragou-lhe o aroma curtido no tempo. Era sua e feita de carne. E era o que lhe restava: depois de tantos descaminhos, rotas sinuosas, sentimentos labirínticos; era o que lhe sobrava, e lembrou-se: “as cartas são pedaços de nós, e de nós”. Sem ter mais com o que se cortar, abriu a carta. Percorreu-a com os olhos e os olhos divisaram o volume daquele corpo a debruçar-se sobre o papel, a textura daquelas mãos a dobrá-lo, a fugacidade com que se embebia das lágrimas nele borrifadas. Sentiu a carta viva. Viva. Ela viva na carta, viva, como se estivesse a chegar pela carta, como se tivesse partido anos atrás e somente agora tivesse conseguido, enfim, chegar à casa. Era uma carta e levava consigo seu corpo, ou mais: a evidência física daquele corpo, o testemunho do corpo que costuma perdurar mais e mais fortemente que o próprio corpo. E soubera, anos atrás, no momento do envio, que ele e somente ele saberia ler aquela carta, que somente ele poderia da carta extorquir o derradeiro sumo de sua existência, e lá, nessa distância no tempo, soubera compreender: “as palavras... são apenas palavras”. E era isso: essa pequena frase, a única garatuja a manchar a perfeição plácida do envelope que continha uma carta plena de si, mas totalmente em branco.

quinta-feira, julho 09, 2009

O espetáculo cotidiano

Sexta cadeira do lado direito do ônibus, cabeça encostada na janela, divagações acerca do devir..., e eis que, esbaforido, suado, “pigarreante” ao pé da fala, um vendedor ambulante deu início ao seu show. Foi aquele tal de “senhores passageiros, madames, mulecada”, e demais salamaleques: próprios destes profissionais. Pendia sobre seus os ombros sacolas de toda qualidade de guloseimas: sacos de pipoca e batata frita, chocolates, balas e, claro, as jujubas. Sempre elas. Assim, deu-se início à velha cantilena, disfarçada de cantoria, utilizada para convencer as gentes de comprar o que não querem. Seria um dia no ônibus como outro qualquer. Mas hoje foi diferente. Hoje foi especial.

Lamuriavam, aqui e ali, uns passageiros que, compadecendo-se de uma garotinha de dez anos que perdera o pai, afirmavam que o choro incontido da filha de Michael Jackson figuraria, a partir de então, como a cena mais triste desde as lágrimas de Xuxa Meneguel durante o enterro de Ayrton Senna. Não imaginavam, portanto, que o ambulante das jujubas poderia prestar uma súbita e espontânea homenagem.

E que o espetáculo comece.

“Cinco jujuba é um real/ Pipoca e batatinha, assada e assanhadinha, é natural”. Fazer o quê? O cara era um poeta. E pra melhorar o “endomarketing”, o sujeito emendou uma referência ao Rei do Pop apropriando-se da melodia duma certa música do astro, e cuja letra segue fielmente reproduzida: “Djôs pí-rê, pi-rê, píííííííírêêêêêêê...”.

As risadas foram gerais: estava mais que aprovada a homenagem. Entretanto, o acaso mostrou que quem comanda o show é ele. Para o desespero dos novos fãs, que já cutucavam os bolsos atrás duns poucos trocados, veio a foice do destino para cortar a performance. E bem no momento em que Mr Jackson Candango desacatava com um moonwalk improvisado. O motorista, sob o pretexto de desviar de outro veículo, sacolejou o coletivo tão fortemente que jujubas e moedas foram arremessadas às últimas cadeiras do ônibus.

Ao levantar-se do chão, o ambulante, que ostentava no semblante a confiança nos passos da lua, fincou novamente os pés no chão. Transformou-se mais uma vez em vendedor, apenas e tão somente, e pode-se ver que a semelhança com o criador de Thriller esgotava-se no corpo esquálido. Não era nem tão negro com o Jackson dos Five, nem tão branco como o Michel de agora. era apenas um garoto de vestes puídas, acocorado, de sacolas pendentes, cioso de que pudessem dele roubar não a cena – com isso pouco se importava –, mas com as moedas e jujubas que rolavam de um lado a outro do ônibus, ao sabor das sacolejadas.

Súbito, ninguém mais sorria. Ninguém mais falava. Ninguém mais se lamentava pela garotinha dez anos. Michael Jackson fora enterrado num baú de ouro. O ambulante enterrava-se entre nossas pernas por conta de alguns centavos. Ninguém mais se comovia – nem com uma coisa, nem com outra. Apenas pairava no ar uma certeza inabalável: a encenação da miséria humana é mesmo um espetáculo sem par.