editorial de uma renúncia

Do dia em que acordei e tive uma leve impressão de que nada era assim tão grave...

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terça-feira, setembro 21, 2010

Filosofia alemã e música sertaneja – um encontro possível?

Dentre as várias criaturas iluminadas de nossa MPB está um certo Renato Teixeira. Sertanejo de uma cepa hoje quase extinta; de um modo de se ser(tão) do mato que o mato, este que é apenas superficialmente conhecido pelos urbanóides como eu, se torna algo próximo, muito próximo. Na distância de se conhecer este tal sertão, o Teixeira, com sua voz mansa e sua cara de vovô, nos oportuniza uma proximidade. Uma intimidade que, a rigor não deveria estar lá. Ou aqui, em meus pensamentos.

Mais que músico, ele é um excelente contador de histórias. Em recente apresentação no açougue-biblioteca-centro-cultura T-Bone, Renato Teixeira, iluminado que estava por holofotes, nos fazia crer estarmos todos ao redor de uma fogueira, espantando mosquito com a fumaça incansável de um cigarro de palha, sorvendo goles de pinga de alambique e contando causos entre cada música, de caiporas, onças pintadas, aventuras pitorescas que somente em beira de rio é que se pode ver. Histórias que de repente pareciam tão nossas, como se já tivéssemos ouvido ou mesmo contado cada uma delas.

Daí que me vem a cabeça os dizeres luminosos de um caboclo das bandas de lá, chamado Walter Benjamin. Ele nos falava – ou melhor, estou falando sobre o que me lembro de ter lido – da importância dos narradores de histórias para nos darmos conta de nossa própria comunidade. Era como se em cada causo contado se estabelecesse uma relação de pertencimento entre o narrador e o ouvinte. Genial: como uma trama que vem sendo tecida desde tempos imemoriais – o ouvinte que vira narrador e oferece a narrativa a outro ouvinte etc – e que jamais deveria cessar de ser costurada. E o tecido resultante dessas histórias, se nos cobríssemos dele, nos garantiria guardar um bem por demais precioso: uma memória coletiva. Aquilo que constitui a sutil matéria sobre a qual nós construímos o que somos. Quiçá uma identidade, ou um saber compartilhado do mundo, de como as coisas são ou poderiam ser.

E diz mais: “A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão – no campo, no mar e na cidade –, é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. [...] Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso.”

Nas músicas-contos-causos de Renato Teixeira, vemos sua mão, ouvimos sua voz, o seu testemunho de viver que é só dele, e quando narrado, passa – por que não? – a ser nosso também. Você duvida? Então, curte essa, composta com Almir Sater: “... cada um de nós compõe a sua história/ e cada ser em si carrega o dom de ser capaz/ e ser feliz...”. Isso não te remete a coisa alguma em sua vida?

E por falar na vida, há nela tantos fios soltos, tantas tramas ainda por coser. Num dia somos narradores para nos outros sermos ouvintes. Nos momentos mais inusitados – em parques cheios de patos, no meio do trânsito – somos convidados a contar histórias, a viver histórias. Há sobre nós uma constelação de narrativas. Resta saber qual o brilho de nossa própria estrela.