editorial de uma renúncia

Do dia em que acordei e tive uma leve impressão de que nada era assim tão grave...

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terça-feira, maio 17, 2005

Brasília noir.

Cansaço. Está aí uma palavra que atinge um significado especial às 00:30, depois de um dia estafante de trabalho. Saio do jornal para entrar na noite gélida do deserto candango, protegido apenas pelas malhas de ferro e vidro do meu fusca 77. Sem problemas! Levo comigo os sopros de Coltrane, que haveriam de me aquecer nos dez quilômetros, aproximados, que dividem meu ofício de minha cama. Claro, até o momento em que o toca-fitas resolve engolir todo aquele jazz. Sem dar bola para meu toca-fi... quer dizer, engole-fitas, sigo com o possante veículo sem me dar conta de que aquilo se tratava de um prenuncio.

Andei a légua tirana por uma Brasília noir. A mesma, diga-se, com a qual me confronto dia-após-dia. Mas hoje ela quis se mostrar em cores especiais. Arranco os pedaços da fita morta, e coloco o bom e velho Doors, que determina, ao passar na W3, a trilha sonora das ditas damas da noite: “She was a princess/ Queen of the highway”. Hahaha, claro que aquele carro de polícia, de farol apagado, no estacionamento da 711, tinha apenas a intenção de conduzir aquela menina para casa. Devia estar com frio mesmo, a julgar pela saia diminuta, que punha grande dificuldade no ato de entrar no banco de trás do veículo. Grande corporação!

Posso dormir tranqüilo, mas não ainda. Pois dá tempo de saltar de minha veia, a fração de uma atitude semi-heróica, de um proto-calcasiano de 1,62m que, por impulso – e pelo senso de justiça extorquido das revistas do Batman –, freia bruscamente ao ver um morador de rua sendo espancado por outros dois, convenientemente maiores. Claro que eu e minha capa de super-herói muito faríamos para apartar a briga. Provavelmente meu ato seria posto como o de um solidário saco de pancadas, que não agüenta ver outro apanhar sozinho. Milagrosamente, eles param, e correm. Os três, para o mesmo lugar! Sim, inclusive o que apanhava, que se meus olhos não me enganam, corria sendo guiado pela direção de seus algozes. Seria o sono?

Ainda não pude avaliar com a necessária agudeza. Mas enfim, pouco importa este evento, se comparado ao último da noite, onde a fauna noturna de Brasília povoou meu fim de noite singular. Chegando em casa, protegido pela marquise do meu bloco, vejo dormir, em berço esplêndido, Seu João. Ele é um mendigo, imerso na invisibilidade social a que foi forçado a viver – seja pelas perdas da vida, seja pelas rédeas da aguardente. Todas as noites observo, pela minha janela, o Seu João. Sua cama é a grade por onde é expelido o bafo quente dos fornos da padaria que há no subsolo. Na madrugada fria, assisto ao espetáculo cênico de Seu João contra os fantasmas dos sonhos. Ele pragueja com uma eloqüência que se perde na noite. Ao gritar nomes guturais, d’alguma fábula pessoal, ou mesmo refugo de sua memória corrompida pelo álcool, divide comigo, sem que ele perceba, a subjetividade de sua vida fora do lugar.

Roubei de meu próprio armário uma manta, e fui cobri-lo, como que por agradecimento pelo espetáculo encenado. Oh, como sou um bom menino! Compartilhei, desta maneira, da cretinice da ajuda humanitária que afaga muito mais a consciência daquele que ajuda, do que daquele que foi, num momento apenas de uma longa vida, ajudado. Parecendo ser espinhado pelo algodão da manta que, pensei, seria a única salvação para aquele pobre senhor, Seu João se vira sem nem mesmo abandonar sua alucinação particular e fala – não para mim, para a pilastra – “Não te quero mais!”.

O mistério ressoava na minha cabeça ainda de manhã, quando fui comprar pão e vi Seu João mendigando por pedaços. Observei longamente o velho que perdera para o dia sua aura de mistério. Qual será seu Rosebud, Seu João? Recolho-me ao meu lar e me consolo, mais uma vez, nos braços de Jim Morrison, que, com sua inigualável voz cálida, me diz:

The Spy - Doors

I'm a spy in the house of love.
I know the dream, that you're dreamin' of.
I know the words that you long to hear.
I know your deepest, secret fear.

I'm a spy in the house of love.
I know the dream, that you're dreamin' of.
I know the words that you long to hear.
I know your deepest, secret fear.

I know ev'rything.
Ev'rything you do.
Ev'rywhere you go.
Ev'ryone you know.

I'm a spy in the house of love.
I know the dreams, that you're dreamin' of.
I know the words that you long to hear.
I know your deepest, secret fear.
I know your deepest, secret fear.
I know your deepest, secret fear.

I'm a spy, I can see you
What you do.
And I know.