editorial de uma renúncia

Do dia em que acordei e tive uma leve impressão de que nada era assim tão grave...

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sexta-feira, outubro 05, 2007

De literatura e outras pequenezas da vida.

Um Atrapalho no Trabalho – John Lennon

Chafurdar em sebos de livros tende a ser uma experiência pra lá de recompensadora. Tardes inteiras envolto em publicações do arco da velha, edições fora de catálogo, clássicos que trazem consigo poeira de tempos atrás. E certo dia, quando minha rinite alérgica já anunciava o colapso de minhas vias aéreas, eis que me surpreendo, na sessão de contos, com um título inusitado: Um Atrapalho no Trabalho. E a coisa melhora quando me deparo com o autor: John Lennon. É, caro leitor, cara leitora, aquele carinha de óculos, mais famoso que Deus, que tocava com outros três fabulosos e namorava uma japa que, segundo contam as más línguas, é a mãe da Björk. “Mas contos?”, perguntaram alhures. Contos, sim. Contos, poesias e ilustrações. Tudo feito por John “Working Class Hero” Lennon.

E se você, caro leitor, cara leitora, está achando tudo isso meio estranho, não ligue agora, pois não mencionei ainda o tradutor. Nada menos Paulo Leminski, que distraidamente venceu uma das maiores barreiras à tradução de uma obra singular. Explicando: Lennon, ao longo de mais de duzentas páginas, trás para o texto e a gravura o que há de melhor no mercado de aditivos alucinógenos. Inclassificável, brinca com neologismos, frases non sense, viagens de duplo sentido, direção, profundidade. Trocadilhos para todos os gostos. Veja cá um exemplo:

No dentista
Senhora: Tenho um dente enraizado que me faz dor.
Senhor: Se jogue sobre o traseiro, senhora, e escancare a sua vala. Oh, seu interior está completamente nu!
Senhora: Puxa vida! Só fiquei com oito dentes!
Senhor: Então você perdeu oitenta e três!
Senhora: Descrente!
Senhor: Cadacão diz que temos quatro decisivos, dois felinos e dez polares, que, juntos, fazem 32, à sombra (...)

Originalmente publicado em 1965, Um Atrapalho no Trabalho é um livro que, longe dos olhares de quem só conhece o beatle de ouvidos, completa – ou mesmo amplia – o horizonte mágico e misterioso das sonoridades desafiadoras de clássicos como I’m the Walrus, ou mesmo Strawberry Fields Forever. Seu texto, que desafia normas e condutas, pode parecer, num primeiro momento, simplório, pouco elaborado. Mas basta ficar atento para a subterrânea ironia presente a cada página para averiguar a acidez do humor britânico.

As ilustrações, de traços simples, mas ainda assim provocadores, nos remetem às garatujas infantis de nossos pré-primários. Tudo, enfim, composto como se o autor não se levasse a sério. Como se o cirurgião que vai lhe extrair o apêndice, começasse, súbito, a praticar malabarismo com os bisturis. E então, vai arriscar?